Lei
Maria da Penha
Justiça paulista recebeu
90 mil casos de violência
doméstica em 2016
6
de março de 2017, 7h45
Por
Thiago Crepaldi e Claudia Moraes
*
Reportagem especial do Anuário
da Justiça São Paulo
2017, que será lançado
nesta quarta-feira (8/3) no Tribunal
de Justiça de São
Paulo.
Na
passagem de 2016 para 2017, em
Campinas, um homem invadiu a festa
em que uma família comemorava
a chegada do ano novo e matou
a tiros sua ex-mulher, o filho
do casal e mais nove pessoas.
Em seguida se suicidou.
Episódios
como esse, com diferentes graus
de violência, se repetem
aos milhares no estado de São
Paulo. Em 2016, o Judiciário
paulista recebeu mais de 90 mil
acusações de agressão
praticadas por homens contra mulheres
ou familiares marcadas pela submissão
decorrente do gênero e de
relação de afeto.
Foi para combater esse tipo de
crime que, há 10 anos,
foi editada a Lei Maria da Penha
(Lei 11.340/2006).
Desde a edição
da lei, a Secretaria Especial
de Políticas para as Mulheres,
do Ministério da Justiça,
criou a Central de Atendimento
à Mulher por meio do Ligue
180. Nestes 10 anos, o serviço
prestou mais de 5 milhões
de atendimentos. De janeiro a
junho de 2016, foram 68 mil relatos
de violências em todo o
país. Em comparação
com o mesmo período de
2015, houve aumento de 142% nos
registros de cárcere privado,
com média de 18 por dia.
Registrou-se, também, crescimento
de 147% nos casos de estupro,
média de 13 por dia. A
maioria das denúncias se
refere a casos de violência
física e psicológica.
Foto: Claudio Fachel/SSP-RS
Juízes
de varas especializadas ouvidos
pelo Anuário da Justiça
afirmam que, nestes 10 anos, não
foi a violência contra a
mulher que aumentou. Para eles,
o que mudou foi a percepção
dessa problemática pela
sociedade – aí incluindo
a própria mulher vítima
de agressão. Com o tempo,
acreditam, cresceu a consciência
e a coragem para denunciar homens
violentos em casa. Ou seja: os
casos sempre existiram, mas não
chegavam ao conhecimento do Judiciário.
Sancionada pelo
presidente Luiz Inácio
Lula da Silva em 7 de agosto de
2006, a Lei 11.340 surgiu com
o intuito de criar mecanismos
para coibir, punir e erradicar
a violência doméstica
e familiar contra a mulher. O
nome pelo qual se tornou conhecida
é uma homenagem a Maria
da Penha, uma biofarmacêutica
do Ceará que ficou paraplégica
depois de levar um tiro do marido,
economista e professor universitário.
Maria da Penha
conta que, antes de se casarem,
ele era uma pessoa amável
e prestativa. Só depois
do casamento, no início
dos anos 80, e do nascimento das
três filhas do casal, que
o marido revelou seu lado violento
dentro de casa. Em sociedade,
continuava com sua boa imagem,
de pessoa dócil e afetuosa.
Denunciado pelo atentado à
mulher, ocorrido em 1983, ele
foi condenado 19 anos mais tarde
em dois júris populares
à pena de 8 anos de prisão.
Cumpriu 16 meses em regime fechado.
A condenação só
ocorreu depois de manifestação
da Comissão Interamericana
dos Direitos Humanos da Organização
dos Estados Americanos (OEA).
Foto: Claudio Fachel/SSP-RS
Juízes
que lidam com a matéria
entendem que uma decisão
judicial tem impacto pedagógico
não só para o agressor,
mas para toda a comunidade. Para
eles, cada sentença condenatória
é a prova de que nem a
sociedade nem o Judiciário
toleram mais esse tipo de conduta.
A partir de 2011, foram criadas
na Capital sete varas especializadas
em violência doméstica
e familiar contra a mulher. Nos
últimos quatro anos, período
em que o tribunal passou a gerar
estatísticas de produtividade
desses casos, o que se viu é
que, apesar da especialização,
as varas da Mulher não
conseguem atender à demanda
de casos de violência doméstica.
De 2013 para 2016 o número
total de sentenças proferidas
no estado aumentou de 5,6 mil
para 16 mil. O acervo de casos
à espera de julgamento,
entretanto, cresceu de maneira
surpreendente
Em dezembro de
2013, a vara instalada no bairro
da Penha, na Zona Leste, tinha
em andamento pouco mais de 1 mil
processos. Quatro anos depois
os feitos passavam de 3 mil. A
outra vara especializada da Zona
Leste, em São Miguel Paulista,
tinha 3,4 mil processos pendentes
em 2013. Em outubro de 2016, o
estoque de processos se aproximava
dos 9 mil. Em todas as outras
varas especializadas da Capital
registrou-se escalada semelhante
no número de casos pendentes
de julgamento, uma indicação
clara de uma demanda maior do
que a capacidade de julgar dessas
varas. O interior tem apenas três
varas especializadas. Localizadas
em São José dos
Campos, Guarulhos e Sorocaba,
não tiveram aumentos tão
expressivos como os registrados
na capital (veja quadro).
O Tribunal de
Justiça enfrenta a falta
de varas especializadas no interior
com a criação de
anexos judiciais, que processam
exclusivamente casos de violência
doméstica, mas estão
subordinados a uma vara criminal.
Já estão em funcionamento
os anexos de Suzano, Ribeirão
Preto, Itu e Assis. Há
projeto para instalação
de novas unidades especializadas
em Santos, Andradina e Limeira,
ainda sem previsão de implementação.
A
mesma tendência de crescimento
do estoque de ações
à espera de julgamento
é registrada pelas varas
não especializadas, que
também julgam casos de
violência doméstica.
As varas da Grande São
Paulo, que formam a 1ª Região
Administrativa Judiciária,
passaram de 30 mil casos em tramitação
em 2013 para 58 mil em 2016. As
cidades da região de Bauru
(3ª Região) tinham
4,6 mil processos pendentes em
2013, contra mais de 9 mil em
2016. Em Campinas (4ª RAJ),
os 11 mil casos em tramitação
dobraram para 22 mil em 2016.
Gil
Ferreira/Agência CNJ
Maria da Penha, a biofarmacêutica
cearense que se tornou símbolo
da luta contra a violência
familiar. F
O Conselho Nacional
de Justiça (CNJ) colocou
o enfrentamento à violência
doméstica contra as mulheres
como uma das metas do Judiciário
para 2017. Isso significa que
os juízes deverão
dar prioridade para o julgamento
desse tipo de processo.
Em São
Paulo, processos da Lei Maria
da Penha já foram distribuídos
em ordem prioritária em
2016 como parte da campanha “Todos
Somos Maria da Penha”, lançada
pelo presidente da corte, Paulo
Dimas Mascaretti.
Em 2012, o TJ-SP
criou a Coordenadoria Estadual
da Mulher em Situação
de Violência Doméstica
e Familiar do Poder Judiciário
do Estado de São Paulo
(Comesp) para assegurar que os
direitos das mulheres sejam cumpridos.
A Comesp é formada pelas
desembargadoras Angélica
de Almeida e Maria de Lourdes
Rachid Vaz de Almeida e pelas
juízas Elaine Cristina
Monteiro Cavalcante, Maria Domitila
Prado Manssur Domingos e Teresa
Cristina Cabral Santana Rodrigues
dos Santos. Outros 12 juízes
de Direito atuam como colaboradores.
A
coordenadoria presta atendimento
multidisciplinar à mulher
vítima de violência,
desde serviço psicológico
e social até encaminhamento
para reparações
quando há danos à
saúde ou estéticos.
Há também as casas-abrigo,
previstas na Lei Maria da Penha,
para que a vítima possa
se abrigar, longe do alcance do
agressor, e tenha subsídios
para viver de forma autônoma,
sem precisar voltar para a antiga
residência.
De acordo com
Angélica de Almeida, coordenadora
da Comesp, o enfrentamento de
gênero doméstico
e familiar requer interlocução
entre todos os atores, públicos
ou privados. “A mulher que
está sob risco de violência
deve ser atendida de uma forma
efetiva, desde o serviço
médico, à delegacia
de polícia, até
o processo chegar ao tribunal
na apelação. Todos
esses serviços precisam
estar interligados, senão
ela fica desatendida em algum
momento”, explica.
Em muitos casos,
as mulheres ficam com sequelas
físicas no corpo, por causa
de agressões no rosto,
perda de dentes e até mutilações
de mamas e órgãos
genitais. A desembargadora relata
que já julgou casos em
que um namorado arrancou parte
do nariz da mulher com uma mordida.
Em outro caso, o marido deu remédio
para a mulher dormir e a trancou
em casa durante o final de semana
sem comida. Houve também
o caso do namorado que picotou
o cabelo da mulher no meio da
rua e do homem que pegou a companheira
pelo cabelo e a arremessou contra
a parede.
Os
juízes das varas especializadas
aprenderam de sua experiência
que o agressor não chega
de um dia para o outro e comete
um crime. A violência costuma
seguir um ciclo que chega a durar
anos. Por isso, é importante
identificar o fato no início
e aplicar as medidas de prevenção.
Eles contam que a primeira manifestação
costuma ser de violência
psicológica, na forma de
ameaça, humilhação,
isolamento, vigilância constante,
perseguição e limitação
do direito de ir e vir. Posteriormente,
as ameaças passam às
vias de fato e evoluem para agressões
com lesões corporais.
De 2013 a 2016,
a Justiça paulista determinou
a aplicação de 254.776
medidas protetivas. A prisão
do agressor é determinada
quando fica comprovado que a vítima
está correndo risco de
vida, quando foi agredida e quando
há descumprimento das medidas
protetivas.
A juíza
Elaine Monteiro Cavalcante, titular
da Vara Central de Violência
Doméstica e Familiar da
Capital, entende que a prisão
é medida de exceção.
Ela chama para conversar com o
homem que descumpriu a medida
protetiva pela primeira vez e
só o leva à prisão
se ele reincide.
De acordo com
dados do setor de estatística
da segunda instância, o
TJ-SP recebeu quase 26 mil apelações
em casos de violência contra
mulher de 2009 a 2016. Mais de
20 mil casos foram julgados. Os
desembargadores do tribunal têm
feito uma interpretação
extensiva da Lei Maria da Penha,
aplicando-a em todos os casos
em que há violência
ou submissão por conta
da condição de mulher.
Dessa forma, agressões
de filhos contra as mães
ou de pais contra filhas ou enteadas
e até mesmo de mulheres
transgênero contra suas
companheiras têm atraído
a competência das varas
especializadas.
Juvenal
Duarte, desembargador da 5ª
Câmara Criminal, entende
que a lei não é
exclusiva para as mulheres e deve
ser considerada em sentido amplo,
envolvendo todos que, no âmbito
familiar, se encontram em situação
de fragilidade. “Ou as relações
homoafetivas entre indivíduos
do sexo masculino não seriam
abarcadas pela lei em estudo apenas
em decorrência do gênero?
Não há como negar
que a preocupação
do legislador foi além
da proteção do gênero
feminino, incluindo todas as relações
domésticas e familiares”,
diz em um voto.
Para a juíza
Elaine Cavalcante, a Lei Maria
da Penha é reconhecida
pela ONU como uma das três
melhores do mundo. Ressalva, apenas,
que as penas são muito
brandas. “No crime de ameaça,
a pena varia de 1 a 6 meses de
detenção”,
lamenta. A juíza Teresa
Rodrigues dos Santos, da 2ª
Vara Criminal de Santo André,
concorda. “Em especial o
delito de ameaça e as contravenções
penais de vias de fato e perturbação
de tranquilidade. Também
acho que deve ser criado um tipo
penal específico para a
perseguição que
as vítimas sofrem pelos
agressores – o stalking
do Direito Americano –,
assim como para a pornografia
de vingança”, explica.
Para ela, são duas situações
extremamente graves, que não
têm alcançado a proteção
devida e cuja tipificação
penal pode trazer um avanço.
O juiz Caio Moscariello
Rodrigues, titular da vara especializada
de São Miguel Paulista,
diz que a especialização
é fundamental. “Não
se trata de simplesmente condenar
e aplicar a pena prevista em lei,
o que invariavelmente ocorre em
varas criminais. Em violência
doméstica, o problema não
se resolve com a condenação,
considerando que réu e
vítima continuarão
se relacionando, porque geralmente
são casais que possuem
filhos”, explica.
Ele entende que
as medidas protetivas, que obrigam
o agressor a se afastar da vítima
e podem ser impostas rapidamente,
sem aguardar o trâmite do
processo, são o maior avanço
da Lei Maria da Penha. “Já
como deficiência estatal,
aponto a existência de poucas
instituições adequadas
para abrigo e acolhimento de vítimas,
e também para reeducação
de agressores.”
São apenas
sete casas-abrigo na cidade de
São Paulo, que atendem
a demanda de outros municípios.
No interior a escassez é
ainda maior. Cidades de maior
porte, como Araraquara, Marília
e São José do Rio
Preto, dispõem de apenas
um abrigo. São locais seguros,
de endereço não
divulgado, que oferecem moradia
protegida e atendimento integral
a mulheres em risco de vida iminente
em razão da violência
doméstica para que elas
não precisem retornar à
antiga residência.
As Delegacias
de Defesa da Mulher – são
nove na Capital, 14 na Grande
São Paulo e 107 no interior
e litoral, com uma por cidade
– funcionam somente nos
dias úteis e em horário
comercial, e não nas madrugadas
e fins de semana, quando a violência
costuma ocorrer. Questões
de Direito Civil, como divórcio,
guarda, divisão de bens,
continuam a ser tratadas de forma
dissociada da violência
doméstica.
Thiago Crepaldi
é repórter da revista
Consultor Jurídico.
Claudia Moraes
é repórter da revista
Consultor Jurídico.
Revista Consultor
Jurídico, 6 de março
de 2017, 7h45
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