Violação
de prerrogativas
Proposta de ministro de gravar
conversas entre advogados e presos
é contra a lei
12 de janeiro
de 2017, 15h04
Por Sérgio
Rodas
O
ministro da Justiça, Alexandre
de Moraes, defendeu a gravação
de conversas entre advogados e
presos em penitenciárias
de segurança máxima.
Em entrevista ao jornal Folha
de S.Paulo, o constitucionalista
afirmou que essa é uma
forma de cortar a comunicação
de líderes de facções
criminosas com os demais integrantes
das organizações
e, consequentemente, enfraquecê-las.
Segundo ele, a medida é
tomada em prisões de outros
países.
Para Alexandre de Moraes,
gravar conversas de presos com
advogados é caminho para
enfraquecer facções.
Rovena Rosa/ Agência Brasil
Contudo, advogados
ouvidos pela ConJur repudiaram
a sugestão de Moraes. De
acordo com os especialistas, a
proposta viola a Constituição
Federal e o Estatuto da Advocacia
(Lei 8.906/1994). O artigo 133
da Carta Magna estabelece que
o advogado é “inviolável
por seus atos e manifestações
no exercício da profissão”.
Já essa norma, em seu artigo
7º, determina que é
um direito do advogado “a
inviolabilidade de seu escritório
ou local de trabalho, bem como
de seus instrumentos de trabalho,
de sua correspondência escrita,
eletrônica, telefônica
e telemática, desde que
relativas ao exercício
da advocacia”.
Em nota, o Instituto
de Defesa do Direito de Defesa
apontou que “em vez de se
concentrar nas questões
reais do problema [do sistema
carcerário], o ministro
decidiu criminalizar uma categoria
profissional inteira”.
Segundo a entidade,
“o fato de o preso pertencer
a uma facção não
coloca seu advogado automaticamente
no banco dos réus”.
Além disso, o IDDD disse
ser “lamentável o
uso demagógico e populista
do momento para a assacar contra
a credibilidade da advocacia brasileira,
que há muito luta, em sua
esmagadora maioria, por um sistema
prisional mais humano e consentâneo
com a lei”.
Para o jurista
Lenio Streck, que é colunista
da ConJur, a ideia de Alexandre
de Moraes é “absolutamente”
contra a Constituição.
“O que o nosso ministro
quer é graduar as inviolabilidades
de acordo com as circunstâncias.
Porém, o advogado tem inviolabilidade
com seu cliente em todas as circunstâncias.
Até o porteiro do Supremo
Tribunal Federal iria declarar
essa proposta inconstitucional.”
Já o ex-presidente
da Ordem dos Advogados do Brasil
José Roberto Batochio,
o pai do Estatuto da Advocacia,
classificou a proposta de “franca
agressão à prerrogativa
básica” da profissão.
“Se continuarmos nessa progressão,
o próximo passo vai ser
acabar com o sigilo do confessionário
do padre, do consultório
do psiquiatra, do ginecologista,
do urologista. Essa ideia é
um nonsense total”, criticou.
Na opinião
do criminalista Marcelo Feller,
a conversa entre advogado e cliente
só pode ser gravada se
houver fortes indícios
de que o profissional está
envolvido na prática de
crimes. Mesmo assim, a medida
depende de requerimento da polícia
ou do Ministério Público
e de autorização
judicial. “Não se
pode gravar toda e qualquer conversa
de um advogado com seu cliente.
É espantoso que um constitucionalista
tenha uma ideia dessas”,
declarou Feller, fazendo menção
ao fato de que o ministro da Justiça
é professor de Direito
Constitucional da USP e da Universidade
Presbiteriana Mackenzie.
A proposta “é
uma temeridade e, pior, de cunho
discriminatório”,
afirma o criminalista Fabrício
de Oliveira Campos, sócio
do escritório Oliveira
Campos & Giori Advogados.
Num lapso de baixo "policialismo",
segundo ele, a fala agrega aquela
concepção pedestre
que coloca num mesmo patamar o
advogado e seu cliente, além
de nivelar o cliente desse advogado
à percepção
genérica de pessoa perigosa.
“Reduzidos
a essa margem, o direito ao advogado
e a inviolabilidade do sigilo
profissional tornam-se descartáveis.
Além disso, a proposta
coloca o advogado e sua atividade
como ameaças ao poder do
estado e à segurança
pública, bem no molde dos
discursos totalitários.”
Violação
de Moro
O juiz responsável pela
operação "lava
jato" em Curitiba, Sergio
Moro, desrespeitou, em 2016, a
inviolabilidade profissional de
Roberto Teixeira, advogado do
ex-presidente Luiz Inácio
Lula da Silva, e do seu escritório.
Moro quebrou o
sigilo telefônico do petista,
mas também de Teixeira
e do telefone central da sede
do escritório dele, o Teixeira,
Martins e Advogados, que fica
em São Paulo. Com isso,
conversas de todos os 25 advogados
da banca com pelo menos 300 clientes
foram grampeadas, além
de telefonemas de empregados e
estagiários da banca.
A interceptação
do número foi conseguida
com uma dissimulação
do Ministério Público
Federal. No pedido de quebra de
sigilo de telefones ligados a
Lula, os procuradores da República
incluíram o número
do Teixeira, Martins e Advogados
como se fosse da Lils Palestras,
Eventos e Publicações,
empresa do ex-presidente.
De nada adiantaram
os dois ofícios enviados
pela Telefônica em fevereiro
e março ao juiz Sergio
Moro informando que ele havia
autorizado a interceptação
do telefone central do escritório
Teixeira, Martins e Advogados.
O responsável pelos processos
da operação “lava
jato” em Curitiba enviou
um novo documento ao Supremo Tribunal
Federal dizendo que a informação
só foi notada por ele depois
que reportagens da ConJur apontaram
o problema.
Intimidade devassada
Na entrevista à Folha,
Alexandre de Moraes também
criticou o fato de se permitir
“visita íntima [a
líderes de facções]
sem que o Estado possa filmar”.
Na opinião do presidente
do IDDD, Fábio Tofic Simantob,
a sugestão de que os encontros
amorosos de detentos sejam gravados
é “voyeurismo estatal”.
“Essa
espécie de voyeurismo estatal
é mais uma medida demagógica
do governo, viola mais um direito
do preso e de sua família
e segue na mesma política
fracassada de violação
da lei que nos trouxe para o caos
que estamos.”
De acordo com Lenio Streck,
gravar visitas íntimas
é ilegal e inconstitucional.
Reprodução
“É
a mesma coisa de colocar câmeras
dentro dos banheiros dos colégios:
ilegal e inconstitucional”,
avaliou Lenio Streck. A seu ver,
o ministro pode até propor
o fim das visitas íntimas
para presos de alta periculosidade.
No entanto, se elas são
permitidas, é inadmissível
que o Estado queria saber o que
se passa nelas.
Irônico,
o advogado afirmou que, em vez
dessas propostas, Alexandre de
Moraes poderia proibir o celular
nos presídios — que
são ilegais, mas facilmente
encontrados em qualquer estabelecimento
desse tipo.
Nessa mesma linha,
Marcelo Feller destacou que a
sugestão “parece
piada”. “É
tão surreal a proposta
que chega a ser cômica.”
Modelo de quê?
O ministro da Justiça ainda
apontou o sistema penitenciário
de São Paulo como um modelo
a ser seguido com relação
ao trato de líderes de
facções criminosas.
Contudo, a maior facção
do Brasil, o Primeiro Comando
da Capital (PCC), surgiu em presídios
paulistas na década de
1990. De lá pra cá,
a organização fortaleceu-se
e expandiu suas atuações
para diversos outros estados.
Mais uma vez,
Streck ironizou a declaração
de Alexandre de Moraes: “Se
o conceito de modelo é
quem criou [as facções
criminosas], então o ministro
está certo”. Também
sarcástico, Tofic Simantob
disse que “o estado de São
Paulo é um modelo muito
eficiente de como fortalecer o
crime organizado dentro do presídio
e produzir uma facção
criminosa de alcance nacional”.
Pior: tudo indica
que o governo paulista tem um
acordo “por baixo dos panos”
com o PCC, lembrou Marcelo Feller.
Conforme o pesquisador da Universidade
de Cambridge (Inglaterra) Graham
Willis, a taxa de homicídios
do estado (atualmente de 8,73
homicídios por 100 mil
habitantes) só caiu na
década passada porque São
Paulo, via pacto de não
agressão, deixou que a
facção dominasse
as favelas.
Batochio argumenta
que o modelo a ser seguido não
é o de São Paulo,
e sim o desencarceramento. Segundo
o ex-presidente da OAB, a prisão
deve ser reservada apenas para
os criminosos perigosos. Somente
assim será possível
evitar a superlotação
dos presídios e massacres
como os ocorridos em Manaus, Boa
Vista e Patos (PB), que “degradam
a imagem do Brasil no exterior”.
Feller tem visão
semelhante e defende que o foco
não seja a punição,
mas a ressocialização
dos detentos. Se há um
modelo estadual a ser seguido,
sustenta, é o do Espírito
Santo, que investiu em audiências
de conciliação,
educação dos presos
e reinserção deles
no mercado de trabalho. Dessa
forma, o estado, que tinha o sistema
carcerário mais superlotado
em 2003, passou a ser o último
nesse ranking em 2014, como informou
a Folha.
Mais presídios
Em reação aos massacres
nos presídios, o presidente
Michel Temer prometeu repasses
de R$ 800 milhões para
a construção de,
pelo menos, uma nova penitenciária
em cada estado, além de
cinco novas cadeias federais para
criminosos de alta periculosidade.
Na mesma linha
de seu chefe, Alexandre de Moraes
afirmou em dezembro que lançará
em breve um plano de redução
de homicídios focado em
ações policiais,
sem a participação
de pastas da área social.
Entre as medidas estarão
o aumento do tempo necessário
para progressão da pena
(atualmente, o condenado deve
cumprir um sexto de sua punição
para ir para outro regime; se
cometeu crime hediondo, mas é
réu primário, dois
quintos; se já tivesse
antecedentes, três quintos)
e a intensificação
do combate às drogas.
Guerra sem sentido
Com os massacres ocorridos em
presídios, já são
pelo menos 98 detentos mortos
desde o começo de 2017.
Conjugada com a ineficiência
estatal, tudo indica que as execuções
resultaram de conflitos entre
as facções rivais
que controlam paralelamente os
presídios. Mas esses assassinatos
em penitenciárias só
continuam ocorrendo pela insistência
na chamada guerra às drogas,
que sobrecarrega o sistema carcerário,
fortalece as organizações
criminosas e não reduz
o uso de entorpecentes.
Especialistas
ouvidos pela ConJur acreditam
que o cenário sanguinário,
tanto dentro quanto fora das prisões,
só mudará de verdade
com a regulamentação
de todas as drogas. Com isso,
os entorpecentes não seriam
mais considerados uma questão
de segurança, mas um assunto
de saúde pública,
como já ocorre com o tabaco
e o álcool.
*Texto atualizado
às 18h26 do dia 12/1/2017
para acréscimo de informações.
Sérgio
Rodas é repórter
da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor
Jurídico, 12 de janeiro
de 2017, 15h04
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